Vivenciar Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, é um compromisso nacional. Creio que as lições relevantes a serem tomadas, para além do gozo estético, é que o terror não é necessariamente claro. Ele se desenvolve com algumas sutilezas, até que o normalizemos, quando ele passa a ser tolerado. Uma vez assim, toma sua forma plena e audaz.
A vida e desaparecimento de Rubens Paiva foi o sumiço das alegrias. Interrompido pela atrocidade peculiar dos terroristas e sanguinários, das ditaduras e do militarismo. Há aspectos que pulsam a realidade. Uma convocação administrativa para averiguação de fatos não justificada, a invasão de um lar e apossamento dos bens privados, sem justificação, vidas e sonhos. A aniquilação das famílias, de maneira a sequestrar suas subjetividades. Valida-se o cinismo como método de averiguação da realidade, a manipulação de haveres e fatos. O castigo físico e psicológico como meio de distração e morbidez. Não pode gostar da Tropicália! Não pode gostar de gente! Não pode guardar coisas em gavetas! Não se pode ser marido, pai e casa! Tudo ronda, naturalmente, o cotidiano atual.
Os detalhes não escapam à tela. A despedida digna do Pimpão (cão de estimação de Marcelo), que teve um corpo abandonado, cuja dignidade se refaz no rito do enterro e a despedida. O mesmo, não houve com Rubens. A irresignação parcial e minoritária do tecido militar, com a tortura (um militar, no filme.
Talvez fosse assim, proporcionalmente, na realidade). Os cantos que até hoje ecoam nas rondas e treinos das forças de segurança, como um convite e preparo à barbárie que se consumará adiante. A espionagem, sobretudo estatal, desautorizada e injustificada. O álbum de reconhecimento fotográfico, utilizado equivocadamente para fins de indicar o autor da ocorrência de crimes, que até hoje dispara injustiças mordazes.
A irradicação da esperança da juventude com a arte e o desenvolvimento intelectual, o desconfortante conforto da ignorância e a difusão de informações manipuladas e falsas. A esperança, hoje esfacelada, na advocacia (há exceções) como meio de concreção de direitos, resistência e proteção dos invisibilizados. A sutileza das convenções econômicas masculinas e, o entrave do acesso ao patrimônio familiar pela mulher.
A sutileza do olhar, a angústia de não sê-lo vivaz, a recalcitrância da ausência. A impossibilidade de driblar a morte pela memória, desconstituída pela incerteza de morte, ou incerteza de vida. O olhar de Eunice (esplendor de Fernanda Montenegro) apagado pelo desaparecimento cognitivo, firme em buscar, o que já não se pode.
Lembrei do olhar do meu avô, com Alzheimer, que apontava o nada, de modo a ilustrar a cena cotidiana. Eu o chamava, ele não vinha, como Rubens. O filme é sobre o desaparecer e, sobretudo, sobre o reaparecimento atual daquilo que atua para fazer sumir, inconsolavelmente.