A forma de condução dos interrogatórios no Supremo Tribunal Federal voltou a gerar debates no meio jurídico, especialmente à luz das mudanças implementadas pela reforma do Código de Processo Penal de 2008. Do ponto de vista técnico e processual, observa-se que, em determinadas situações, ainda se adota um modelo que remonta à lógica anterior à reforma, quando o juiz conduzia diretamente a maior parte dos questionamentos.
Desde a reforma do Código de Processo Penal em 2008, o Brasil deu passos importantes para consolidar um modelo acusatório no processo penal, com ênfase na paridade de armas e na proteção das garantias fundamentais. Esse avanço ganhou reforço com a Lei da Colaboração Premiada (Lei 12.850/13), que reconheceu o papel do delator como parte da defesa, resguardado por direitos inalienáveis durante o processo.
Nesse novo paradigma, o interrogatório é compreendido como um ato de defesa — não mais um instrumento de obtenção de prova pelo juiz. Realizado ao final da instrução, ele deve ser conduzido pelas partes (defesa e acusação), cabendo ao magistrado atuar como mediador do ato. Essa lógica é ainda mais relevante quando o interrogado é um delator: alguém que, por colaborar com a Justiça, está mais suscetível a pressões e distorções interpretativas, caso o juiz abandone sua posição de neutralidade.
No entanto, o recente interrogatório de Mauro Cid no âmbito da Primeira Turma do STF acendeu um alerta preocupante. O ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, conduziu toda a oitiva: abriu os trabalhos, mediou as perguntas da PGR, da defesa e dos corréus — sem permitir que as partes dirigissem suas perguntas diretamente. O formato adotado remete a práticas inquisitoriais, que a legislação e a jurisprudência contemporânea já haviam superado.
Essa centralização do ato viola preceitos fundamentais do processo penal democrático. Primeiro, porque compromete o contraditório pleno, ao submeter a formulação de perguntas à mediação judicial. Segundo, porque enfraquece a transparência e a imparcialidade, pilares do princípio do juiz neutro. E, por fim, porque reduz o controle da defesa sobre a estratégia de questionamento, o que pode impactar diretamente a validade da colaboração.
Chama atenção, inclusive, que os próprios fundamentos doutrinários amplamente reconhecidos no meio jurídico reforçam a defesa de um modelo acusatório robusto, baseado na autonomia das partes e na neutralidade do juiz. Ao monopolizar a condução do interrogatório, o ministro não apenas se afasta dessa coerência teórica, como também fragiliza a legitimidade do processo e abre espaço para retrocessos institucionais.
A atuação do relator, especialmente em casos de alta visibilidade e complexidade, precisa reforçar — e não comprometer — as garantias processuais. É papel do juiz organizar o ato, garantir a ordem e proteger os direitos das partes, mas sem substituir seus papéis ou distorcer o equilíbrio do processo.
O que vimos no interrogatório de Mauro Cid não é apenas um erro procedimental: é um sinal de alerta. Mesmo quando se trata de delatores, as regras do jogo democrático não podem ser flexibilizadas ao sabor das circunstâncias. O modelo acusatório é uma conquista civilizatória — e sua preservação deve ser responsabilidade de todos os atores do sistema de justiça.
A adoção de formatos anteriores à reforma, que já não encontram respaldo nem na legislação vigente nem na jurisprudência consolidada do próprio Supremo, reacende a reflexão sobre a evolução das práticas processuais no país e sobre a necessidade de alinhamento entre a teoria e a prática nos atos judiciais.