Em março de 2024 o Ministério Público Federal em São Paulo ajuizou uma Ação Civil Pública pedindo a responsabilização de 42 ex-agentes da ditadura envolvidos na repressão, torturas, assassinatos e desaparecimento de 19 militantes políticos. Os denunciados, detalhado na Ação, portanto, participaram diretamente de atos de tortura, desaparecimento de presos políticos (incluindo sequestros, ocultações de cadáveres e falsificações de documentos públicos) e homicídios.
“Os pedidos fazem parte de uma ação civil pública que tem o objetivo de promover uma série de medidas de reparação, preservação da memória e esclarecimento da verdade sobre o período da ditadura”.
A matéria traz os nomes de todos os denunciados. São 26 ex-integrantes do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do II Exército, em São Paulo que se tornou um centro de referência nas atividades de repressão da ditadura a partir de 1970 e 16 ex-servidores do Instituto Médico Legal (IML).
Entre os denunciados estão o então coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015) que chefiou o órgão entre 1970 e 1974 e o ex-delegado de Polícia Sérgio Paranhos Fleury, um dos mais conhecidos torturadores da ditadura.
Em relação a Brilhante Ustra, em 2008 foi reconhecido formalmente pela Justiça como torturador, se tornando o primeiro e único da lista de 377 agentes do Estado listados como torturadores pela Comissão Nacional da Verdade a receber uma decisão judicial nesse sentido. No entanto, em 2016 foi exaltado pelo então deputado federal Jair Bolsonaro durante seu voto pelo impeachment da então presidenta e ex-presa política Dilma Rousseff () “o terror de Dilma Rousseff” e também chamado por ele de “herói nacional” (para mais detalhes sobre a atuação de Ustra, consultar o livro Ilícito absoluto — a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura, de Pádua Fernandes (Editora Patuá, 2023) e sobre Fleury Autopsia do medo: vida e morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury, de Percival de Souza, Editora Globo, 2000).
Em relação ao Instituto Médico Legal (IML) de acordo com o documento, a colaboração com o DOI-CODI “foi intensa e frequente durante o período”, com a produção de laudos falsos sobre os óbitos de militantes políticos e propõe que seus agentes devem ser condenados “pela perpetração de violações aos direitos humanos, mediante participação direta nos atos de ocultação dos sinais de tortura e das circunstâncias da morte das vítimas e indiretas na sua prisão ilegal, tortura e morte”.
E antecede. No livro Dossiê ditadura- mortes e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985), da Comissão de Familiares de Mortes e Desaparecidos Políticos, publicado em 2009 (779 páginas) se refere a processos ético-profissionais contra médicos-legistas: “o respaldo técnico proporcionado pelos Institutos Médicos Legais (IML) ao aparato de repressão política dava-se pela legalização das mortes, ao confirmarem as versões policiais e, muitas vezes, permitindo a saída desses cadáveres como indigentes, mesmo quando conheciam sua identidade” (p.30) e que nas pesquisas da Comissão “Foram encontrados vários laudos de necropsia e fotografias de perícias de local que mostram claramente as torturas sofridas pelos militantes assassinados” (p.31).
A Ação sugere também que os réus percam funções ou cargos públicos ocupados (se for o caso) ou se forem aposentados, que estas sejam canceladas (Se já falecidos, a ordem judicial para reparação financeira deve ser cumprida por seus herdeiros).
Nesse sentido o Brasil “tem obrigação constitucional e internacional de implementar providências para afastar a impunidade das violações cometidas entre 1964 e 1985 e impedir a repetição de atos autoritários que atentem contra os direitos humanos e o estado democrático de direito” e para isso, é essencial que tanto o governo federal como o de São Paulo possibilite o acesso de arquivos e acervos sobre o período vinculados a órgãos de segurança (Forças Armadas e as policias, civil e militar) e a criação de espaços de memória (online e físicos) sobre as violações de direitos ocorridas na ditadura.
Outro aspecto importante destacado no documento é quanto à imprescritibilidade dos atos de violação a direitos humanos e se refere a duas condenações do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), salientando que o país aderiu voluntariamente à jurisdição do órgão e deve cumprir suas sentenças.
E no dia 21 de agosto de 2024, foi ajuizada outra Ação Civil Pública, assinada pela Procuradora da República Ana Letícia Absy, desta vez denunciando mais 46 ex-agentes ligados a unidades de repressão (Departamento de Ordem Política e Social (Dops), o Destacamento de Operações de Informação e Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) (32) por envolvimento direto ou indireto em sequestros, torturas, mortes e desaparecimentos de 15 opositores do regime (alguns listados constam na anterior, como Sérgio Fleury, Carlos Alberto Brilhante Ustra e do IML, Abaylard Orsini e Antonio Valentini). (o documento, com 197 páginas está disponível aqui.
Traz também a contextualização das graves violações no DOI-CODI e DOPS como “Contexto de origem e atuação do DOPS e IML/SP; Cooperação entre os órgãos de repressão da ditadura civil-militar; A intensificação da repressão e o DOPS/SP; Mecânica e procedimentos de tortura pelo DOPS/SP e Violações de direitos humanos cometidas contra as mulheres pela repressão”.
E propõe, entre outras coisas, a reparação dos danos às vítimas (ressarcimento do Estado) e a exemplo da Ação anterior, o cancelamento dos proventos de aposentadorias dos denunciados “Conforme demonstrado (…) os réus da ativa não podem permanecer nos quadros da Administração federal ou estadual. Pelos mesmos fundamentos, também não podem receber seus proventos de aposentadoria”.
E que a União e o Estado de São Paulo criem, no prazo de 180 dias, junto com os Ministérios da Defesa, da Educação, de Direitos Humanos e Cidadania e da Igualdade Racial, um módulo educacional a ser cursado por todos os integrantes das Forças Armadas, Polícia Federal e das Polícias Civil e Militar do Estado de São Paulo, tratando sobre igualdade de gênero, o papel dos órgãos de defesa e de segurança pública na preservação das instituições democráticas e defesa dos direitos humanos, o combate ao “machismo estrutural que permeia as relações sociais” e prática de violências específicas contra o sexo feminino como violências psíquicas e físicas.
E quanto à responsabilização dos denunciados visa também cumprir as recomendações da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e da Comissão Nacional da Verdade (CNV) de crimes contra a humanidade, não amparados pela Lei da Anistia de agosto de 1979.
O livro Dossiê Ditadura – mortes e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985) também se refere a este aspecto afirmando que “os instrumentos jurídicos disponíveis são suficientes, uma vez que os crimes de torturas, mortes e sequestros cometidos por agentes do Estado não foram anistiados, apenas os crimes de natureza política (…) ele anistiou os autores de crimes políticos, conexos ou praticados por motivação política. Ora, só praticam crimes políticos, ou com motivação política, aqueles que desejam ir contra o estado. Os atos dos órgãos de repressão visavam justamente o contrário: defender seus governantes e sua ideologia “(p.48)”.
No documento há também referência ao que consideram como “Uma das poucas e consistentes iniciativas oficiais em revelar a verdade sobre as violações aos direitos humanos” que foram os documentos que deram base à publicação do livro Direito à Memória e à Verdade, (Brasília, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007) que reúne as conclusões da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos que é um “reconhecimento oficial do Estado brasileiro de que alguns órgãos de repressão foram verdadeiros centros de terror e de violação da integridade física e moral de pessoas”. Resultado de 11 anos de trabalho da Comissão traz um breve relato e perfil de 479 militantes políticos, que foram vítimas da ditadura militar (o livro, com 502 páginas, está disponível aqui ).
Outra ação importante foi no dia 30 de agosto de 2024, em Brasília, com a participação do ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, da retomada dos trabalhos da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos que havia sido extinta em 2022 no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (criada em 4 de dezembro de 1995 foi extinta no dia 30 de dezembro de 2022). Para o ministro, além da importância de se fazer justiça, a comissão terá entre seus objetivos o que ele chamou de “combate as narrativas mentirosas sobre o passado do Brasil”.
O documento do Ministério Público Federal e a recriação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos são importantes iniciativas em relação às violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar no Brasil que visam “à concretização de uma efetiva justiça de transição no país através de medidas de justiça, reparação, memória, verdade e responsabilização”. Justiça de transição exige um “certo de contas” com o passado, de medidas a serem adotadas no processo de construção da democracia.
Como consta no documento do MPF é fundamental a “criação de espaços de memória, para que as gerações futuras possam conhecer e compreender a gravidade dos fatos preservação da memória e elucidação da verdade sobre fatos ocorridos durante a ditadura (1964-1985)”.
Reconhecer a relevância da memória e verdade é fundamental no processo de democratização da sociedade brasileira e do seu sistema de justiça.
As opiniões contidas nessa coluna não refletem necessariamente a opinião do Veronotícias.com