O objetivo desse artigo é o de contribuir para uma reflexão contemporânea sobre a necessidade de estabelecimento de uma cultura organizacional inclusiva para as mulheres no ambiente de trabalho de forma justa e equitativa. A reivindicação do pleito feminino para a adoção de políticas e práticas que garantam a sua a inclusão em todos os níveis hierárquicos é questão de justiça social e de desenvolvimento econômico. Por isso, esse tema deve ser interpretado de forma multidimensional.
Um dos maiores desafios da mulher é o ingresso no mercado de trabalho, este cenário sempre foi uma realidade do universo feminino. As mudanças tiveram seu nascedouro no século passado com a conquista a direito a voto; o estatuto da mulher casada; autorização para portarem cartão de crédito, o direito à prática do futebol, a autorização para a mulher trabalhar fora, a equiparação do voto feminino ao masculino, a escolha da mulher em usar ou não o sobrenome do marido, a criação da primeira Delegacia da Mulher em São Paulo e, finalmente, o reconhecimento de que mulheres e homens são iguais pela atual Constituição Brasileira.
O movimento de libertação da mulher continuou nos anos seguintes do século seguinte com a vigência do novo código civil quando a virgindade deixou de ser motivo para anulação de casamento, o feminicídio passou a ser tipificado como um crime de homicídio qualificado com a Lei Maria da Penha, a lei Carolina Dickmann, a importunação sexual feminina passou a ser considerada crime, a repreensão e combate à violência política contra a mulher ao longo das eleições e durante o exercício de direitos políticos e de funções públicas.
Apesar de todas essas mudanças, as mulheres continuam a sofrer com o assédio laboral, a desigualdade salarial, altas taxas de desemprego e a baixa representatividade em cargos decisórios e de governança, seja público ou privado. Não se pode ignorar que a igualdade de gênero é um direito humano assegurado em tratados internacionais, recepcionados nos sistemas constitucionais de quase todo o mundo, com exceção a países de baixo grau de democracia e de severidade religiosa.
A busca por um ambiente de trabalho sadio, justo e equilibrado para as mulheres, pretas e brancas, é uma das pautas mais relevantes da sociedade contemporânea globalizada. No recorte para mulheres pretas a desigualdade é ainda muito maior! A atriz e produtora norte americana Viola Davis reitera a preferência pelo estereótipo branco nos papéis ofertados para atrizes da indústria cinematográfica, na TV e no mundo em geral: “a feminilidade é definida por quanto da beleza “clássica” e delicadeza você tem, ou quão branca você é… e cada personagem que interpretamos nos força a entrar em contato com nossas feridas” (DAVIS. 2022. p 230-234).
No Brasil o cenário não se diferencia, encontramos mulheres negras em grandes companhias do país, mas em posições menos privilegiadas. Em pesquisa recente sobre o Perfil Social, Racial e de Gênero das 1.100 Maiores Empresas do Brasil e suas Ações Afirmativas 2023-2024, o Instituto Ethos constatou que as mulheres pretas ainda são marginalizadas no mercado de trabalho empresarial. Enquanto o número de mulheres negras trainees chega a 53,7%, superando o de homens brancos (9%), nos conselhos de administração (onde as decisões estratégicas das empresas são tomadas), se encontram 1,8% de negras, contra 77% de homens brancos.
O feminismo, como movimento social, remonta da década de 60 nos Estados Unidos, alastrando-se pelos países industrializados, mas adquiriu uma dimensão multinacionalizada com a mesma visão crítica na compreensão da desigualdade de gênero na participação do construcionismo social e econômico.
O reflexo disso foi a designação, pela Organização das Nações Unidas, da ODS 5 – que demanda o objetivo de uma ação conjunta entre governos e atividades econômicas para alcance da igualdade de gênero e empoderamento de todas as mulheres e meninas na Agenda 2030. Todos os objetivos e metas das 17 ODS são integradas e abrangem as três dimensões do desenvolvimento sustentável – social, ambiental e econômica – e podem ser colocados em prática por governos, sociedade civil, setor privado e por cada cidadão comprometido com as gerações futuras. Essas ações demandam da sociedade brasileira a obrigatoriedade de internacionalizar mecanismos para a paridade de gênero.
Em 2020 a pauta mulheres tornou-se um capítulo diferenciado com a Aliança Empresarial de Mulheres do BRICS+ (BRICS WBA), criado pelos chefes de Estado dos países do bloco. O objetivo dessa aliança entre países é o de promover o empreendedorismo e o potencial feminino nos países integrantes do bloco com a inclusão de empresas femininas na cadeia de valor global, o estabelecimento de cooperação internacional para maior participação econômica feminina e fomentar a cooperação em negócios liderados por mulheres. Essa pauta tornou-se estratégica após divulgação de dados pela Confederação Nacional da Indústria – CNI onde apontam que 40% do consumo mundial está nas mãos das mulheres; 50% das casas brasileiras são geridas por mulheres; mulheres pagam mais impostos em produtos para mulheres e ainda afirmam que empresas mais diversas são 45% mais competitivas.
Dentre os princípios gerais da atividade econômica destaca-se a redução das desigualdades sociais e regionais – com o critério de justiça distributiva como paramento para a justiça social. No Brasil, a busca pelo direito ao reconhecimento da força do trabalho feminino encontra amparo constitucional nos artigo 5º, I e 170 da CF/88 cuja análise deve ser respaldada em uma ótica multidimensional que contemple garantias estruturantes que não estejam em nível de subordinação nas estruturas organizacionais dos grandes grupos de econômicos.
A filósofa e ativista social Djamila Ribeiro é enfática ao escrever que o movimento feminista precisa ser interseccional, dar voz e representação às especificidades existentes no ser mulher. A interação entre os diversos fatores sociais que impactam o nosso mundo feminino não nos devem afetar separadamente. Sem dúvida, a igualdade formal constitui o aspecto mais evidente desse movimento, e o tema da inclusão das mulheres (pretas e brancas) no mercado de trabalho exige uma metamorfose de paradigma social com mudanças estruturantes nas normas e estruturas organizacionais que cabe a cada uma de nós, mulheres, a reconstrução da nossa participação democrática na sociedade, perseguindo empatia entre as diferenças em busca da nossa cidadania inclusiva, explica Djamila. (RIBEIRO. 2018.)
A Ministra Carmen Lúcia nos ensina que a ideia de isonomia ou igualdade é uma característica essencial do Estado Democrático de Direito. A sociedade moderna vincula o sentimento de igualdade a um tratamento justo, pressupondo a equidade como forma de promover um ambiente equilibrado entre homens e mulheres, de acordo com as suas necessidades. É na igualdade fundada nas desigualdades humanas virtuais e justas, que se reconhece a dignidade humana como essência igualizadora de todos os homens, que se elabora o direito. (ROCHA, pág 45, 1990)
Sob o ponto de vista político-filosófico o princípio da igualdade está relacionado ao princípio da universalidade, ou seja, ao tratamento igual a todos como garantia de que esses tenham acesso às mesmas oportunidades sem distinção devido a alguma condição ou qualquer outro fator. De outro lado, a equidade reconhece que não somos todos iguais e por isso é necessário ajustar esse “desequilíbrio”.
Gisele Cittadino assegura que a Constituição Federal de 1988 confere prioridade aos valores da igualdade e da dignidade humana, tendo como premissa a diminuição das desigualdades sociais a partir da distribuição igualitária de bens públicos e da igualdade de oportunidade, o que é assegurado pelos direitos fundamentais sociais (CITTADINO, pág 15,2004).
Para a garantia desses direitos, as políticas adotadas no ambiente de trabalho devem promover a crença de que a igualdade deve moldar-se no respeito à diferença e à diversidade, orientadas para a norma de paridade de participação, que leve em consideração o aspecto econômico e o cultural, mas sem que um reduza o outro. Deve ter êxito ao confrontar tanto elementos vinculados à redistribuição quanto ao reconhecimento, ou seja: a justiça deve ser compreendida sob a ótica da justiça distributiva (distribuição equitativa de recursos) e a de reconhecimento (igual reconhecimento das diferentes identidades de grupos em determinada sociedade). Esses paralelos poderão ajudar a compreender à tensão entre políticas de reconhecimento de identidades e políticas de redistribuição, focadas na ideia de igualdade com equidade.
Não poderíamos falar sobre igualdade de gênero sem mencionar uma das principais referências do feminismo, a teórica crítica feminista norte-americana Nancy Fraser, que afirma que a busca pela igualdade de condições no ambiente de trabalho não é somente questão de justiça social, mas de desenvolvimento econômico porque está relacionada tanto com a lucratividade como com a criação de valor, e evidenciam, cada vez mais, que empresas que valorizam e adotam a diversidade apresentam melhor performance financeira (FRASER, p.7-109, 2003).
Nesse sentido, os dados das pesquisa People & Organizacional Performance constatou que as empresas no quartil superior em termos de diversidade de gênero ou de raça e etnia tendem a obter retornos financeiros acima da média do setor. As empresas que têm essas dimensões no quartil inferior são estatisticamente menos propensas a obter retornos acima da média. Além disso, a diversidade é provavelmente um diferencial competitivo que, ao longo do tempo, transfere market share para as empresas mais diversificadas. (MCKINSEY & COMPANY, 2017).
Sobre o tema, foi recepcionado pelo Brasil a Convenção nº 100 que propõe a igualdade salarial para trabalho de igual valor entre homens e mulheres e a Convenção nº 111, que aborda a discriminação no emprego e ocupação – ambas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) ratificadas pelo Decreto nº 10.088/2019 e internalizadas como normas jurídicas supralegais devido à sua natureza de direitos humanos, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Recentemente, no Brasil, a auto regulação por meio do compliance tornou-se a coluna estruturante para a governança corporativa e angariou importância jurídica com a promulgação da lei anticorrupção, quando a noção de conformidade tornou-se reflexo para melhoria da credibilidade, relacionando-se diretamente com a mudança da cultura organizacional da empresa. A autora Marcia Momm afirma que o compliance fornece diretrizes essenciais para prevenção, detecção e mitigação de fraudes, desvios e irregularidades, protegendo os direitos de todas as partes interessadas e a reputação da empresa que visem, entre outros objetivos, promover a igualdade entre homens e mulheres e a não discriminação. (MOMM, p.164, 2022).
Em outras palavras, o compliance implica em adotar medidas e práticas para garantir que a empresa esteja em conformidade com princípios, leis e normas, de maneira indelével como um imperativo moral, legal e econômico, que visem, entre outros objetivos, promover a igualdade entre homens e mulheres e a não discriminação. Torna-se um o escudo de proteção da corporação e de seus colaboradores, mas é estratégico o seu tratamento distinto na empresa, concedendo autonomia de ação aos profissionais responsáveis pela sua implantação e manutenção, assegurando que a teoria e a prática seja complementares e verídicas.
O Portal de Compras BR disponibiliza à sociedade informações referentes às licitações e contratações promovidas pelo Governo Federal. Enfatiza que o governo é o maior comprador do país porque adquire uma variedade imensa de produtos, bens e serviços destinados a manutenção da máquina pública e prestação de serviços, além de ser uma cliente estável, portanto um grande mercado potencial. Diante dessa afirmação, uma estratégia natural seria a de considerar o compliance como item obrigatório para vendas ao governo. Mas, entretanto, essa exigência não é considerada constitucional por muitos doutrinadores, sob o entendimento de que tal regra violaria diretamente o artigo 37, inciso XXI da Constituição, que assegura a igualdade de concorrência entre os licitantes. Isso se deve ao fato de que a Constituição Federal brasileira garante o princípio da isonomia, proibindo qualquer tipo de discriminação, inclusive no âmbito das contratações públicas.
Então, uma outra abordagem mais viável poderá ser a sensibilização de grandes empresas – que têm maior capacidade de influenciar o mercado e promover mudanças estruturais mais amplas, para o uso de campanhas de conscientização incentivos e certificações voluntárias.
A sociedade brasileira é marcada por formas estruturais de desigualdades desde a sua colonização. Ponderar sobre o papel das organizações no processo de transformação desses padrões culturais, de forma que assegure a inclusão do gênero feminino no mercado de trabalho, com igualdade de oportunidades e equidade é urgente e desafiador.
A luta pela redução das desigualdades não é um debate recente na sociedade e exige uma compreensão multidimensional dos fatores que influenciam sua aplicação. Especificamente nas empresas e entidades, o processo de inclusão vai muito além de contratar mais mulheres, estipular cotas ou mesmo ter um percentual maior de mulheres no quadro de colaboradores. É necessário assegurar a possibilidade de ascensão profissional dentro de patamares que promovam a equidade.
O feminismo, por natureza, é um movimento inquieto, deixou de ser radical para entender que busca-se a igualdade, a equidade e os direitos legais, mas antes de tudo a justiça, e para isso precisa-se ajustar a nossa lente para alcançar a liberdade para todas as pessoas, independente de gênero, raça, sexualidade, classe ou gênero. Como diz Djamila Ribeiro em suas palestras: “Não dá pra pautar contra uma opressão e alimentar outra”.
As opiniões contidas nessa coluna não refletem necessariamente a opinião do Veronotícias.com