A recente decisão do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI), no processo nº 14022.048117/2024-14, trouxe à tona um relevante debate jurídico acerca da possibilidade de uma maioria simples (50% + 1 das quotas) alterar unilateralmente o próprio contrato social para reduzir quóruns deliberativos previamente fixados.
O caso envolveu a sociedade J. Demito Administração e Participações Ltda., cuja sétima alteração contratual previa expressamente, em sua cláusula 35ª, que alterações contratuais demandariam quórum qualificado de ¾ do capital social. Contudo, a partir da promulgação da Lei nº 14.451/2022, que reduziu o quórum legal mínimo previsto no art. 1.076, II, do Código Civil para maioria absoluta (mais da metade do capital social), os sócios majoritários (55%) deliberaram pela alteração contratual reduzindo o quórum previamente pactuado, sem o consentimento da sócia minoritária (45%).
O DREI, ao reformar decisão anterior da Junta Comercial do Tocantins (JUCETINS), considerou legítima a deliberação da maioria simples, sob o argumento de que a nova redação legal possui caráter cogente, afastando previsões contratuais anteriores incompatíveis com o novo regime jurídico.
Entretanto, essa leitura gera graves questionamentos.
Do ponto de vista jurídico, importa destacar que a autonomia privada é um dos pilares das sociedades limitadas, permitindo que os sócios estabeleçam, por acordo de vontades, regras mais restritivas do que aquelas previstas na legislação supletiva. Como ensina Fábio Ulhoa Coelho, o contrato social não é mero reflexo da lei, mas verdadeiro estatuto interno, com força obrigacional entre os sócios, desde que não contrarie normas cogentes.
O problema reside justamente em definir se as novas disposições do Código Civil, introduzidas pela Lei nº 14.451/2022, possuem caráter cogente ou supletivo. Caso sejam normas cogentes, não poderiam ser afastadas por convenção das partes; caso sejam supletivas, prevaleceriam os pactos contratuais mais restritivos livremente estipulados.
A decisão do DREI partiu da premissa de que o novo quórum legal substitui automaticamente os pactos preexistentes, sem necessidade de reforma consensual. Essa conclusão, contudo, ignora que a cláusula de quórum qualificado foi livremente ajustada pelos sócios sob a vigência do regime anterior e que o contrato social, ao disciplinar matéria admitida à negociação privada, tem força normativa vinculante.
O art. 1.053 do Código Civil dispõe expressamente que, salvo disposições contrárias, as sociedades limitadas são regidas pelas normas relativas às sociedades simples. Em complemento, o art. 1.071, caput, permite que o contrato social estabeleça regras diversas das previstas em lei, inclusive sobre matéria deliberativa. Não há previsão expressa de que a alteração legal posterior revogue automaticamente cláusulas contratuais preexistentes.
Além disso, sob a perspectiva do direito intertemporal, o art. 2º, §1º, da LINDB determina que a lei posterior revoga a anterior apenas quando expressamente o declare, seja com ela incompatível ou regule inteiramente a matéria. Embora o novo art. 1.076, II, tenha reduzido o quórum mínimo legal, não há no texto legal qualquer menção à revogação automática de cláusulas contratuais mais protetivas firmadas validamente sob a legislação anterior.
Admitir que a maioria simples possa, unilateralmente, reduzir o quórum contratualmente pactuado para alterações estruturais significa permitir que a maioria altere as próprias regras que limitam seu poder, o que colide com os princípios da segurança jurídica, da estabilidade dos pactos e da preservação da autonomia privada. Tal interpretação amplia excessivamente o alcance da nova lei, permitindo efeitos retroativos não declarados, em afronta ao princípio da proteção da confiança legítima das partes.
Por fim, do ponto de vista do controle societário, trata-se de risco relevante. Ao permitir que a maioria simples modifique unilateralmente pactos contratuais que exigiam consenso qualificado, esvazia-se a proteção institucional das minorias, fortalece-se a concentração do poder decisório e cria-se ambiente de instabilidade jurídica nas relações societárias.
Portanto, ainda que a decisão do DREI tenha fundamento na leitura literal da lei, ela ignora nuances relevantes do direito contratual e societário, especialmente no que tange à força obrigacional dos pactos firmados validamente entre os sócios. O tema merece maior reflexão doutrinária e jurisprudencial, sob pena de desproteção estrutural das minorias e corrosão do equilíbrio essencial à boa governança societária.