“Que saco isso. Um homem vem lá do sul do país explodir a cabeça na frente do STF e a culpa recai sobre nós que não temos nada a ver com isso.” O desabafo de um Deputado Distrital, em conversa informal no plenário da CLDF, ilustra perfeitamente o dilema que Brasília enfrenta hoje – uma tensão que coloca em risco não apenas o acesso ao fundo constitucional, mas a própria saúde orçamentária do Distrito Federal.
Na estrutura federativa brasileira, o DF ocupa posição única. Como capital federal, usufrui de privilégios especiais, notadamente o acesso ao Fundo Constitucional, criado para garantir o funcionamento adequado da Capital da República. A dimensão desses recursos é impressionante: das estimativas de R$ 66 bilhões previstos para o orçamento do GDF em 2025, R$ 25 bilhões virão do fundo constitucional – montante equivalente ao orçamento anual completo do estado do Espírito Santo. No entanto, este arranjo peculiar encontra-se hoje sob pressão crescente, resultado de um comportamento contraditório da elite política local.
Não é coincidência que, quando já tinha este texto pronto, o Governo Federal anunciou que, entre os cortes propostos para fazer ajuste fiscal, haveria um limite ao crescimento do Fundo Constitucional do Distrito Federal. O governador Ibaneis Rocha reagiu afirmando que o Governo Federal tem raiva de Brasília.
É inegável e justificável a dependência do DF em relação a esses recursos federais. O fundo constitucional financia serviços essenciais – saúde, educação e segurança pública – permitindo que a capital mantenha um padrão de serviços compatível com sua importância nacional. Porém, testemunhamos hoje um perigoso descompasso entre os privilégios recebidos e o cumprimento das responsabilidades inerentes à condição de capital federal.
A Irresponsabilidade de Ibaneis Rocha
O ápice desta dissonância manifestou-se na nomeação de Anderson Torres para a Secretaria de Segurança Pública do DF (2020-2021). O governador reeleito, Ibaneis Rocha, escolheu para o cargo justamente quem, como Ministro da Justiça do governo Bolsonaro, havia se notabilizado por ações controversas: desde mobilizar a Polícia Rodoviária para dificultar o acesso de eleitores às urnas em regiões favoráveis à oposição, até a negligência com a segurança dos acampamentos em frente aos quartéis e com os protestos diante da sede da Polícia Federal.
A nomeação de Torres já sinalizava, àquela altura, um afastamento preocupante das responsabilidades institucionais da capital. Em 26 de dezembro, quando a indicação foi confirmada, alertei nas redes sociais: aquilo representava uma péssima sinalização do governo do DF para o futuro Governo Lula. Completei: “o maior risco de segurança institucional que temos hoje para um governo em Brasília é a ação de bolsonaristas”. Duas semanas depois, os eventos de 8 de janeiro confirmaram, dramaticamente, os riscos dessa postura negligente. Se o DF hoje arrisca perder o Fundo Constitucional, a responsabilidade recai diretamente sobre Ibaneis Rocha.
As Raízes do Problema
Dois fatores principais explicam esse comportamento temerário da elite política local. Primeiro, o crescente desalinhamento ideológico com o governo federal. O bolsonarismo ganhou força significativa na política local – não por acaso, circulam rumores de que Michelle Bolsonaro disputará uma vaga ao Senado pelo DF nas próximas eleições. Se em tempos normais divergências ideológicas entre governantes local e federal não deveriam representar risco institucional, o cenário muda radicalmente quando um dos lados se radicaliza e conspira contra a democracia.
O segundo fator apresenta complexidade ainda maior. Brasília tornou-se uma cidade marcada por profundas desigualdades e graves problemas sociais. A concentração de investimentos no Plano Piloto, sede das instituições federais, contrasta dolorosamente com a carência de serviços básicos em diversas regiões administrativas. Este cenário alimenta um sentimento legítimo de injustiça na população, que encontra eco no comportamento da elite política local. Consequentemente, diminui o interesse em atender adequadamente a população flutuante – Ministros, Senadores, Deputados – que, embora não vote no DF, constitui razão fundamental de sua existência como capital. A desigualdade em Brasília transformou-se, assim, em questão de Segurança Nacional.
No entanto, a perda ou redução do Fundo Constitucional não resolveria – pelo contrário, agravaria – esta situação, prejudicando especialmente as regiões mais vulneráveis. O verdadeiro desafio está em aprimorar a gestão destes recursos, garantindo sua distribuição mais equitativa pelo território.
Caminhos para o Futuro
A solução deste impasse exige um novo pacto entre DF e União. É fundamental estabelecer mecanismos mais robustos de prestação de contas na gestão dos recursos federais, vinculando-os explicitamente tanto às responsabilidades da capital quanto a metas concretas de redução das desigualdades. Paralelamente, devemos criar incentivos para que a elite política local valorize seu papel nacional e seu compromisso com o desenvolvimento equilibrado do território.
O futuro do DF como capital federal depende desta reconciliação. Não se trata apenas de manter privilégios, mas de honrar responsabilidades e promover desenvolvimento inclusivo. A capital federal precisa transcender seu papel de mera receptora de recursos mal distribuídos para se tornar modelo de gestão pública eficiente e comprometimento institucional para todo o país.
O momento atual exige reflexão profunda. O Brasil necessita de uma capital à altura de suas responsabilidades nacionais, e o DF precisa encontrar equilíbrio sustentável entre suas dimensões local e federal, sem negligenciar nenhuma de suas regiões ou populações. Este desafio, que transcende questões partidárias, demanda uma nova visão de governança federativa que harmonize equidade e eficiência.