A violência patrimonial é um problema que muitas vezes passa despercebido, mas que afeta profundamente a vida de tantas. Essa situação pode deixar marcas emocionais duradouras, tornando-as mais vulneráveis em relacionamentos abusivos. Quando alguém destrói, retém ou controla os bens e recursos financeiros de uma mulher, não está apenas atacando seu patrimônio, mas também sua liberdade e autonomia.
Muitas vezes silenciada e subestimada, essa modalidade de violência não ocorre no vácuo, é fruto de uma sociedade que historicamente negou às mulheres o direito à propriedade, à herança, à remuneração justa. A luta contra esse tipo de violência não é apenas uma questão de justiça, mas de reparação histórica porque durante séculos, o patrimônio feminino foi tratado como extensão dos maridos ou dos pais, e ainda hoje as estatísticas refletem esse passado: mulheres possuem menos bens, recebem salários menores e são desproporcionalmente atingidas pela pobreza em casos de divórcio.
Nos termos do artigo 7º, IV, da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), esse ilícito se manifesta pela “retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos da mulher”. Ainda que tipificada, essa forma de abuso continua invisibilizado, e frequentemente negligenciada no debate público sobre violência de gênero e pela ausência de políticas públicas eficazes e continuadas.
A violência patrimonial assume múltiplas facetas, todas com um denominador comum: o cerceamento da independência financeira da vítima. Na prática do controle financeiro coercitivo o agressor impede que a vítima tenha acesso ao seu próprio dinheiro, cartões bancários ou salário. A mulher trabalha, mas não vê seu dinheiro. O agressor administra seus ganhos, decide o que ela pode ou não comprar, muitas vezes reduzindo-a a um estado de mendicância dentro da própria casa. Nesse sentido também está o endividamento forçado caracterizado pela realização de financiamentos, empréstimos ou compras no nome da vítima sem seu consentimento ou foi emocionalmente induzida, de ambas as formas levando-a à ruína financeira.
Outra faceta dessa agressão é a dissipação dolosa de patrimônio comum, reconhecida quando seus bens são vendidos sem consentimento, contas conjuntas são esvaziadas, direitos patrimoniais são deliberadamente ignorados em processos litigiosos. Já a apropriação indébita de rendimentos e benefícios é caracterizada pelo desvio de suas aposentadorias e pensões, como se a mulher não fosse digna de usufruir do próprio sustento.
As mulheres sofrem violência patrimonial devido a uma combinação de fatores estruturais, históricos e culturais que perpetuam a desigualdade de gênero e a vulnerabilidade econômica feminina. Algumas das principais razões incluem a dependência econômica e desigualdade de gênero porque desde tempos históricos, as mulheres foram condicionadas a depender financeiramente de figuras masculinas, seja o pai, o marido ou outros familiares. Essa dependência, muitas vezes incentivada por normas culturais e pelo mercado de trabalho desigual, torna mais fácil para os agressores controlarem os bens e recursos das mulheres.
Uma forma de violência que muitas vezes passa desapercebida é o controle como estratégia de poder, que é parte de um ciclo maior de violência doméstica, onde o agressor usa a privação econômica como uma forma de manter a vítima submissa. Ao retirar sua autonomia financeira, ele dificulta sua saída da relação abusiva. Outra forma é a invisibilidade e subnotificação que, ao contrário da violência física, pode ser mais difícil de identificar e denunciar. Muitas mulheres sequer reconhecem que estão sendo vítimas, pois práticas como o controle do dinheiro do casal ou a retenção de documentos podem ser naturalizadas.
Nesse sentido, o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indica que mulheres que integram a população economicamente ativa (52,2%) têm quase o dobro de chances de sofrer violência doméstica em comparação com aquelas que não estão no mercado de trabalho (24,9%). Uma possível explicação é que a presença feminina no mercado de trabalho pode contrariar valores patriarcais, aumentando as tensões e agressões entre o casal e no fim da união.
A falta de educação financeira e jurídica torna muitas mulheres mais vulneráveis a abusos porque a falta desses conhecimentos as impede de se protegerem legalmente, além das barreiras que enfrentam no acesso à justiça. Mesmo quando denunciam, elas enfrentam dificuldades na comprovação da violência patrimonial, considerando que
essa violência se manifesta por meio de ações burocráticas, como a retirada do nome da vítima de bens e contas conjuntas. Além disso, a morosidade do sistema judiciário e a falta de uma abordagem sensível por parte de operadores do direito dificultam a punição dos agressores.
Organizações da sociedade civil, como a plataforma EVA- Evidências sobre Violências e Alternativas para Mulheres e Meninas, reúne dados sobre violência patrimonial na América Latina. Os dados atualizados da plataforma apontam que, entre 2022 e 2023, todas as formas de violências não letais registraram aumentos expressivos no Brasil. Em especial, as taxas de violência patrimonial cresceram 35%; em 2022, seis em cada 100 mulheres foram vítimas desse tipo de agressão, o maior número desde os dados obtidos, coletados em 2009. Esses dados são vitais para o desenvolvimento de políticas públicas eficazes e para a sensibilização da sociedade sobre a gravidade do problema.
Outra fonte de informação é a revista de negócios e economia Forbes que analisou o relatório “Violência contra a Mulher no Brasil” publicado pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública em 2023. A análise ressaltou que cerca de 33,4% das mulheres brasileiras acima de 16 anos foram vítimas de parceiros íntimos e destacou também que, em 2022, houve um aumento de 12,5% nos casos de violência patrimonial contra mulheres em relação ao ano anterior. A faixa etária mais afetada foi de 25 a 34 anos, correspondendo a 40,5% dos casos, e mais de 60% das vítimas eram mulheres negras.
Ao trazer à tona a questão da violência patrimonial contra as mulheres, é essencial reconhecer que a luta pela igualdade de gênero envolve, inclusive, a proteção dos seus direitos patrimoniais. Se há negligência nessa abordagem, é porque ela desestabiliza estruturas de poder profundamente arraigadas. A ausência de dados específicos sobre violência patrimonial nos relatórios oficiais sobre violência de gênero não é mero esquecimento – é reflexo da indiferença institucional a um problema que ainda se considera doméstico, privado, menor.